23 de agosto de 2016

Um passeio na história do negro: samba e carnaval.

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Tour pela história do negro, do samba e do carnaval no Rio de Janeiro

by Raiz Africana
O Rio de Janeiro sediou os Jogos Olímpicos. Foi uma oportunidade de apresentarmos para os povos de várias partes do mundo toda a diversidade cultural que a cidade abriga. O samba, um dos traços mais marcantes da cultura carioca, foi reverenciado. Um ritmo que desembarcou aqui vindo nos navios negreiros, trazidos pelos escravos cruelmente obrigados a deixarem a África e virem para a então capital do Brasil, o Rio de Janeiro. No período dos Jogos Olímpicos, o site CARNAVALESCO visitou a nossa "Pequena África". Fomos convidados pelo Rio Media Center e adoramos mostrar esse lado tão importante do nosso Rio de Janeiro.
O passeio teve início em uma parte da Zona Portuária bastante esquecida: o Largo de São Francisco da Prainha, já que ele está localizado na antiga Prainha, que é o nome primitivo da Praça Mauá. O largo abriga casas antigas, porém mal preservadas, um contraste enorme com a Praça Mauá, a cerca de 300 metros dali.
De lá, o tour seguiu para a Pedra do Sal, ponto crucial para a história do samba no Rio de Janeiro. Em 1808, a família real se mudou para o Brasil e fez do Rio de Janeiro a nova capital e sede do governo português. Essa mudança movimentou muito o comércio. As mercadorias chegavam em navios que desembarcavam ali no porto. Dentre as mercadorias, escravos - já que eram assim tratados à época - e o sal.
Mas em 1831, um regulamento delineou três ancoradouros para os navios, sendo que os de carga tiveram que se direcionarem para o trecho entre a atual Praça Mauá e o Cais do Valongo. Ou seja, o caminho para mercadorias como o sal, muito valioso à época, ficou restrito. No caminho ainda havia uma enorme pedra, um obstáculo, para o transporte dessa mercadoria. A saída? Esculpir degraus na própria pedra.
Por se localizar numa região onde chegavam diariamente centenas de escravos, essa área se tornou um berço de manifestações africanas. Ali morava Tia Ciata, uma negra cozinheira e amiga dos policiais, que comiam da sua comida. Ela sedia a sua casa para manifestações culturais africanas, que eram feitas majoritariamente por estivadores - escravos, grande parte deles "defeituosos" - com alguma deficiência na perna, ou nos braços - e que se amontoavam no porto em busca de trabalho. Quando a guarda real vinha para acabar com o movimento, os policiais amigos avisavam Tia Ciata com antecedência. Dentre as manifestações, candomblé, capoeira e samba - com uma pronúncia mais próxima a 'sémba'-, um ritmo trazido da África pelos negros.
Nessa época, não existia carnaval para essas pessoas, vistas como inferiores, pois era uma festa exclusiva da elite, da qual os pobres eram proibidos de participarem. Num movimento de resistência e ocupação, os chamados "sambistas" passaram a ir para as ruas e para as portas dos bailes de carnaval para fazerem suas manifestações culturais. Esse é o início do que se tornaria depois os blocos de rua do carnaval. Em algum momento, as duas festas se encontraram, os ritmos se misturaram, fazendo do samba uma marca da festa de carnaval.
Na sequência, passando pelos caminhos da escravidão e do samba, o tour foi para o Cais do Valongo, local de entrada de milhares de africanos de Angola, Congo e Moçambique e hoje conhecido como Cais da Imperatriz. Primeiro era chamado cais do Valongo e foi o berço de entrada da maioria dos escravos que vieram para o Rio. Quando a escravidão começou, o porto de Salvador, onde hoje está o Pelourinho, foi o primeiro a receber escravos. Com a vinda da família real para o Brasil, e o Rio sendo elevado à condição de capital, o porto se transferiu para a região portuária. Posteriormente ele foi coberto e refeito, para melhorar a aparência da região e ficar mais bonito para receber a futura imperatriz, Thereza Cristina, que chegaria ao Rio pelo porto para conhecer seu futuro marido, Dom Pedro II.
Também incluso no projeto de restauração da região à época da vinda da realeza, o tour subiu por uma escadaria marcada pela arte urbana da cidade, que dá no Jardim Suspenso do Valongo, uma construção paisagística datada de 1906, concebida como jardim romântico destinado aos passeios da sociedade da época.
Com a condição degradante a que eram submetidos os escravos nos navios, muitos chegavam mortos ou morriam assim que desembarcavam. Por isso, foi criado um cemitério para os chamados "pretos novos" - já que morriam novos -, na região próxima ao Morro do Castelo e igreja de Santa Luzia. Com a reclamação da elite local por causa do mal cheiro, o cemitério foi removido e trazido para a área onde os negros já se concentravam, na região da Gamboa. Durante anos, a localização ficou desconhecida, mas após a reforma de um casarão na região, foram achadas as ossadas. Esse foi o ponto final do tour, onde está atualmente o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, que abriga inclusive algumas ossadas dos pretos novos (nome dado aos cativos recém-chegados ao Rio de Janeiro em meados do século XIX, em uma área hoje conhecida como Pequena África).
É um tour importante para a imprensa, os turistas, mas principalmente para os moradores da cidade, que desconhecem boa parte da história africana presente na história do Rio, o sofrimento dos negros e seu movimento de resistência que propiciou o advento do samba e do carnaval de rua, e que fez deles marcas da cultura carioca.


Fonte: Carnavalesco

1 de agosto de 2016

As marcas urbanas da violência colonial



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As marcas urbanas da violência colonial

by Raiz Africana
Das várias formas de preconceito que continuamos a experimentar no século 21, um racismo muito mais perigoso do que o racismo institucional do passado é o racismo que está arraigado nas estruturas.
                                                         Ângela Davis
Cicatrizes da cidade
A raça, embora seja conceito biologicamente superado, continua operando como um critério de classificação dos sujeitos, a estruturar a distribuição do poder no sistema capitalista. Convertido no pós-abolição em construção social legitimadora da exploração da mão-de-obra dita “livre”, o racismo sobreviveu mesmo à derrocada das premissas eugênicas em voga no mundo “científico” da virada do século. Enquanto processo de produção de identidades políticas e contrastivas, atravessa a classe e o gênero, constituindo-se fator fundamental para compreender a dinâmica hierarquizada das relações inter-raciais.
Sob essa ótica, a história hegemônica da urbanização, de autoria da intelectualidade branca e predominantemente masculina, tem invisibilizado a participação negra e indígena na construção das cidades e na formação da nação brasileira, estabelecendo-se como estratégia de desumanização das pessoas e dos povos não brancos. Trata-se de máxima expressão da violência cognitiva: um voraz epistemicídio.
Enedina Alves Marques, a primeira mulher engenheira do Brasil, que trabalhou no conjunto de edificações do Centro Cívico de Curitiba. acervo do historiador Sandro Luis Fernandes.
Enedina Alves Marques, a primeira mulher engenheira do Brasil.
Esse apagamento, de um lado, alinhado à forma(ta)ção sectária do espaço urbano, de outro, deve ser lido como manifestação das mecânicas racistas da sociedade como um todo: não é apenas o território habitado que define a segregação nele experimentada, mas são as interações sociais, em diversos âmbitos da vida, que, orientadas pela branquitude normativa, objetivam manter o status quo, isto é, a mesma lógica colonial da Casa Grande/Senzala, traduzida no tecido urbano como Centralidades/Periferias.
A herança da escravidão não deixou cicatrizes apenas nos corpos e espíritos. Marcas da violência colonial estão impressas na carne das cidades brasileiras e de todo o Sul geopolítico. Nesse contexto, raça, classe e gênero incidem simultaneamente para impor o lugar sociopolítico da pessoa negra. As cidades exprimem os conflitos e desigualdades na produção do espaço, ao mesmo tempo em que os acirram e (re)produzem. Isso já era evidente na gênese oitocentista do urbanismo, cuja perspectiva higienista marginalizou populações estigmatizadas, sob a falsa neutralidade da técnica. Atuando como saber ou disciplina de esquadrinhamento e controle, o urbanismo colabora para aprofundar a segregação socioespacial, que é igualmente, étnico-racial. Flagrantemente eurocentrado, ele tem ignorado o impacto do racismo nas principais decisões geopolíticas num quadro de globalização conflitiva.
Em toda a América nos deparamos com os vestígios dramáticos desse tão presente passado. O cenário não difere nas cidades africanas, colonizadas massivamente nos séculos XIX e XX e gravemente feridas pelo urbanismo modernista, que sob os preceitos (e preconceitos) da ordem, separou física e simbolicamente brancos e não brancos. Assim, a institucionalização do apartheid, seria apenas a explicitação posterior de um regime urbano já vigente. A matriz funcionalista imperante no período andou de mãos dadas com a política colonial: as cidades africanas, construídas por mãos negras, não pertencem de fato a elas.
Lá e cá, do quilombo à favela, os nós de uma teia urbana racialmente hierarquizada denunciam perversas continuidades. Áreas dotadas da melhor infraestrutura e de maior capital político, são as casas-grandes contemporâneas. Enquanto isso, a precariedade das periferias evoca as senzalas de outrora. Não por acaso o hip-hop as vem designando “periafricanias”, pois, nelas a forte presença afrodescendente é escancarada. A atitude crítica do hip-hop desvenda, assim, uma territorialidade fragmentada, excludente e segregadora, questiona o lugar do/a negro/a na sociedade e transforma esses territórios em espaços de resistência e esperança: os quilombos do século XXI.
Patrimônio, memória e embranquecimento
As fronteiras simbólicas das cidades são acentuadas pelo quase total desconhecimento sobre as espacialidades africanas e afro-brasileiras. É chegada a hora de questionar a confecção da memória e o seu deliberado embranquecimento. Vergonhoso constatar o número pífio de bens arquitetônicos tombados nacionalmente em alusão à história dos/as negros/as e seus saberes. Vale lembrar que a emergência das políticas de preservação no país testemunhou um período em que se buscava construir o patrimônio cultural pautado pelo desejo de unicidade e homogeneidade da nação brasileira. Em plenos anos 1930, as diretrizes para sua institucionalização foram embasadas em valores da elite, consagrados na monumentalização da arquitetura colonial de estruturas de poder, não raro apaziguando e encobrindo seu lado opressor. Trata-se de uma memória parcial que se arroga universal, sob os moldes da razão metonímica da modernidade ocidental: eurocêntrica, androcêntrica, urbanocêntrica, etnocêntrica e heteronormativa.
A cristalização de uma única memória arquitetônica também acaba por perenizar sistemas de dominação social em favor de determinados grupos. Esse viés predominou até a inovadora Constituição de 1988, a qual incorporou referências culturais dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira. Passadas três décadas, no entanto, essa transição discursiva não deu conta de reverter significativamente a paisagem embranquecida da historiografia oficial. No livro do tombo do IPHAN, permanecem exíguos os bens culturais indígenas e afro-brasileiras, tanto no concernente a conjuntos urbanos quanto a ícones arquitetônicos isolados. Dos quase mil bens materiais protegidos em nível federal, apenas 1% concerne à memória afrodescendente: 02 quilombos, 09 terreiros, 01 senzala e 01 museu da “magia-negra”, num total de irrisórios 13. Urge, portanto, a reinvenção do passado. Outros sentidos, técnicas, materiais e modos de habitar merecem ser registrados, valorizados e integrados, de fato, na memória coletiva nacional.
Construindo a cidadania negra
Vicente M. de Freitas foi um dos construtores habilidosos à frente da reforma da Igreja Matriz, atual Catedral, e um dos fundadores da Sociedade Operária Beneficente 13 de maio.
Vicente M. de Freitas
Acompanha o apagamento dos bens construídos um silêncio quase generalizado em torno de relevantes personalidades negras da construção civil brasileira. Os irmãos engenheiros André e Antônio Rebouças são um dos poucos exemplos a receber a devida atenção da historiografia recente. Sua contribuição, porém, extrapola em muito os arrojados empreendimentos ferroviários com que se fizeram populares: é de autoria deles o primeiro grande plano de saneamento do Rio de Janeiro, responsável por inaugurar o abastecimento de água domiciliar para os mais pobres da então capital nacional. Estudos similares foram encomendados para a Curitiba imperial, a ponto da fonte na Praça Zacarias ser-lhes dedicada.
Na capital paranaense, outros nomes são dignos de menção, como Vicente Moreira de Freitas, um dos mestres à frente da reforma da Igreja Matriz, atual catedral. Tendo conquistado sua liberdade em meados de 1880, o exímio construtor tinha também expressivo engajamento político. Foi membro da Irmandade do Rosário dos Pretos, importante espaço de associativismo e resistência da comunidade negra de Curitiba. No ano da abolição, participou da fundação da Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, sendo responsável pela edificação de seu primeiro prédio. Sociedade esta que no dia hoje, aliás, faz aniversário.
Décadas mais tarde, a curitibana Enedina Alves Marques foi a primeira mulher a se diplomar em engenharia civil no Sul do país. E a primeira brasileira negra a integrar a categoria. Formada na Faculdade de Engenharia do Paraná, em 1945, a despeito do preconceito, consagrou-se profissionalmente na Secretaria de Estado de Viação e Obras. Sua produção e trajetória apenas agora começam a ser desvendadas. Militava na União Cívica Feminina e no Centro Feminino de Cultura. Ainda, colaborou ativamente com Octávio Ianni para o seu livro Metamorfoses do escravo (1962).
Os irmãos baianos André e Antonio Rebouças, dois negros alforriados que viveram em pleno período de Escravidão, cravaram seus nomes na história paranaense.
Os irmãos baianos André e Antonio Rebouças, dois negros alforriados que viveram em pleno período de Escravidão, cravaram seus nomes na história paranaense.
Reconhecer o protagonismo de mulheres e homens negras/os é inadiável para descolonizar a memória, chave para o empoderamento e a emancipação coletivos. Construtoras/es de cidades e de cidadania, suas histórias desconstroem a versão embranquecida de um 13 de maio que pretendeu, durante muito tempo, reiterar a subalternização e o apassivamento. Ao contrário de comemorativa, esta é uma data de luta contra as marcas da violência colonial arraigadas nas estruturas e nos territórios brasileiros. 
Publicado originalmente aqui.
Fonte: Buala